Notícia | CaradaWeb - Dia internacional dos povos indígenas: Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Plantão
Opinião

Dia internacional dos povos indígenas: Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

Publicado dia 09/08/2021 às 09h54min
Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembleias indígenas

Usando a palavra certa pra doutor não reclamar

 Sempre que posso tenho falado sobre os equívocos que cercam a palavra “índio”. Faço uma provocação e tenho certeza que muitas pessoas, especialmente professores, ficam com a “pulga atrás da orelha”. Sempre que isso acontece alcanço meu objetivo. A inquietação é já um principio de mudança. Ficar incomodado com os saberes engessados em nossa mente ao longo dos séculos é uma atitude sábia de quem se percebe parte do todo. É sabido que esta palavra tem, às vezes, um quê de inocência em quem a usa. Tem quem a utiliza conscientemente também. Sabe que se trata de uma atitude política e fica mais fácil para os interlocutores entenderem do que estão falando. Aliás, essa palavra foi devidamente utilizada pelo movimento indígena no início dos anos 1970. Foi uma forma de mostrar consciência étnica. Antes disso não havia uma consciência pan-indígena por parte dos povos nativos. Eram grupos isolados em suas demandas políticas e sociais. Cada grupo lutava por suas próprias necessidades de sobrevivência. Somente depois que começaram a encontrar os outros grupos durante as famosas assembleias indígenas – patrocinadas pela Igreja católica, através do recém-criado Conselho Indigenista Missionário – CIMI – é que as lideranças passaram a ter clareza de que se tratava de problemas comuns a todos os grupos. A partir disso o termo “índio” passou a ter uma ressignificação política interessante. Notem, no entanto, que foi um termo usado na relação política com o estado brasileiro. Cada grupo continuou a se chamar pela própria denominação tradicional. Isso não significou abrir mão do jeito próprio de se chamar. Quando muito, chamavam para os outros grupos ou pessoas indígenas utilizando o termo “parente”. Aqui caberia outra reflexão que já foi feita em alguns trabalhos. No entanto, devo deixar claro que o termo “parente” é usado pelos indígenas para todos os seres (vivos ou não vivos). Chamar alguém de “parente” é colocá-lo numa rede de relações que se confunde com a própria compreensão cosmológica ancestral. Mesmo na língua portuguesa podemos observar que se trata de uma palavra que une concepções (par+ente) que denota um envolvimento que permite compreendermos que dois ou mais seres se juntam numa rede consanguínea. Do ponto de vista indígena isso vai além da consanguinidade e se insere numa cosmologia cuja crença coloca todos os seres (entes) numa teia de relações. Somente nesse contexto é possível compreender a intrínseca relação dos indígenas com a natureza. Isso é, no entanto, assunto para outra conversa. Até aqui tenho usado outra palavra para referir-me aos povos ancestrais. Ora eu uso “nativo”, ora “indígena”. Qual seria a certa? Ambas estão corretas para referir-se a uma pessoa pertencente a um povo ancestral. Por incrível que possa parecer não há relação direta entre as palavras “índio” e “indígena”, embora o senso comum tenha sempre nos levado a crer nisso. Basta uma olhadela num bom dicionário que logo se perceberá que há variações em uma e noutra palavra. No duro mesmo os dicionários têm alguma dificuldade em definir com precisão o que seria o termo “índio”. Quando muito dizem que é como foram chamados os primeiros habitantes do Brasil. Isso, no entanto, não é uma definição, é um apelido, e apelido é o que se dá para quem parece ser diferente de nós ou ter alguma deficiência que achamos que não temos. Por este caminho veremos que não há conceitos relativos ao termo “índio”, apenas preconceito: selvagem, atrasado, preguiçoso, canibal, estorvo, bugre são alguns deles. E foram estas visões equivocadas que chegaram aos nossos dias com a força da palavra. Por outro lado o termo “indígena” significa “aquele que pertence ao lugar”, “originário”, Daniel Munduruku - Convidado Especial Três Reflexões Sobre os Povos Indígenas e a Lei 11.645/08 23 “original do lugar”. Pode-se notar, assim, que é muito mais interessante reportar-se a alguém que vem de um povo ancestral pelo termo “indígena” do que “índio”. Neste sentido eu sou um indígena Munduruku e com isso quero afirmar meu pertencimento a uma tradição específica com todo o lado positivo e o negativo que essa tradição carrega e deixar claro que a generalização é uma forma grotesca de chamar alguém, pois empobrece a experiência de humanidade que o grupo fez e faz. É desqualificar o modus vivendis dos povos indígenas e isso não é justo ou saudável. Outra palavrinha traiçoeira e corriqueiramente usada para identificar os povos indígenas é “tribo”. É comum as pessoas me abordarem com a pergunta: qual é sua tribo? Normalmente fico sem jeito e acabo respondendo da maneira tradicional sem muita explicação. Sei que é um conceito entrevado na mente das pessoas e que só vai sair mediante muita explicação por muito tempo. Daí a importância da lei 11.645/08 no sentido de fazer chegar uma nova versão na cabeça dos estudantes brasileiros. Afinal, o que tem de errado com a palavra? A antiga ideia de que nossos povos são dependentes de um Povo maior. A palavra “tribo” está inserida na compreensão de que somos pequenos grupos incapazes de viver sem a intervenção do Estado. Ser tribo é estar sob o domínio de um senhor ao qual se deve reverenciar. Observem que essa é a lógica colonial, a lógica do poder, a lógica da dominação. É, portanto, um tratamento jocoso para tão gloriosos povos que deveriam ser tratados com status de nações uma vez que têm autonomia suficiente para viver de forma independente do Estado brasileiro. É claro que não é isso que se deseja, mas seria fundamental que ao menos fossem tratados com garbo. Se não se pode chamá-los de “tribo”, como chamá-los? “Povo”. É assim que se deveria tratá-los. Um povo tem como característica sua independência política, religiosa, econômica e cultural. Nossa gente indígena tem isso de sobra e ainda que estejamos vivendo “à beira do abismo” trazido pelo contato, podemos afirmar com convicção que somos povos íntegros em sua composição e queremos estar a serviço do Brasil. Entenda: a serviço do Brasil e não ser considerado um estorvo para o desenvolvimento nacional. Pensar assim é alimentar o preconceito. Uma última palavra: são os “índios” brasileiros? Que tal desentortar o pensamento e inverter a pergunta: serão os brasileiros, “índios”? Será que a ordem dos fatores irá alterar o produto? Não saberia dizer, mas o que observo é que há um abismo entre o ser e o não-ser ou entre o não-ser e o ser. Nesse duelo, os indígenas têm levado a pior.

 

Fonte: Fundação Araporá

Mais Populares

ÚLTIMAS Notícias

Dia Internacional de Atenção aos Acidentes Ofídicos

19 de setembro de 2024 às 13:05:58

Uma razão para viver

18 de setembro de 2024 às 09:12:18

Datena diz que repetiria o gesto

17 de setembro de 2024 às 10:43:05

Fale Conosco

Senhor do Bonfim - BA
99144 - 8025 | | 991448025
lajatoba@yahoo.com.br