Cultura
Doze presentes
Como desfazer o nó? Cheguei aos 17 anos e a vida inteira sem presente de Natal?doze

Doze presentes
Estava com nove anos, pulei o muro do estádio para ver o jogo do Palmeiras, mas um guarda me flagrou, fui colocado para fora. Fiquei magoadíssimo. Por que eu não era como aqueles meninos cujos pais entravam com eles para assistir aos times de São Paulo que vinham à minha terra?
Criança, só conseguia assistir às “peladas” no campo pelado de São Anastácio, sem gramado, desalinhado, esburacado, onde jogavam times da subvárzea. Trancos, encontrões, rasteiras, valia tudo, aquilo não era futebol, nem sei o que era. Mas se divertiam.
Ali pelos doze anos, pensei: e se eu jogar futebol? Entro em campo no jogo preliminar, terminada a partida fico pelo estádio, assisto ao jogo principal. Naquela época, todo jogo oficial tinha uma preliminar, era bom para os olheiros descobrirem talentos. E se eu fosse um talento?
Tentei. O professor de educação física me disse: Precisamos encontrar sua posição. Você me parece menos agressivo, é meio indeciso, não serve para o ataque. Também não para o meio campo. Talvez na retaguarda, defendendo? Só que os atacantes passavam por mim, rápidos. O técnico indagou:
— Por que você insiste? Qual é a sua?
— Jogando no infantil ou no juvenil, depois posso assistir ao jogo com os grandes times, meu sonho.
— Nunca assistiu a uma partida de futebol com um grande time?
— Nunca, não deixam, já fiz tudo, pulei muro, pedi que completassem um ingresso na porta, me olhavam com desprezo, já vendi abacate que tem no meu quintal, o bilhete era mais caro.
— Nunca vi um garoto que não tivesse assistido a uma partida dessas boas, com os grandes. Vou ver o que posso fazer.
— O senhor pode me dar um ingresso, fica como presente de Natal adiantado.
— Presente de Natal, estamos em junho? Mas boa idéia. Podemos fazer isso. Por que não?
Ficou no por que não. Ele era professor de educação física, foi dar aula em outra cidade, Bauru, esqueceu de mim. Os grandes jogos oficiais diminuíram na cidade, o time local foi rebaixado, continuou caindo, descendo de divisão para divisão, até sumir. Todos diziam que o futebol do interior era assim, estava ficando coisa de quem tem dinheiro.
Terminei o ginásio, comecei a trabalhar em um posto de gasolina, passei a garçom de um bar de periferia. Mudei para Araraquara, consegui abrir uma carrocinha de cachorro-quente, deu certo. E eu pensando, ainda tenho de ver um grande jogo, vou me presentear com um bilhete. É triste a gente dar um presente para nós mesmos. Era esquisito, principalmente um presente de Natal.
E os cachorros-quentes saíam bem, eu fazia um dinheirinho, repetia: posso me dar um presente, mas o bom é alguém me dar. Sim, loucura minha, mas era coisa que vinha desde menino, fazer o quê? Será que vou morrer sem presente de Natal? Nem imaginam o que era rondar as vitrines de lojas. Não queria comprar, meu sonho era que a pessoa dissesse: “Seu presente de Natal”.
Como desfazer o nó? Cheguei aos 17 anos e a vida inteira sem presente de Natal? Alguns me diziam: para com isso! Vai ficar maluco! Qual é??? Eu podia, mas não queria me dar. Não queria nada grandioso, importante, impossível. Qualquer coisa que me dessem, dizendo: “aqui está seu presente de Natal”.
Perto dos 18 anos, Bazzani, jogador da Ferroviária, belo time, no auge, passou pela barraca, comeu um cachorro-quente, elogiou, pediu outro. Na hora de pagar eu disse:
— É presente, admiro o senhor. E o Pio.
Ele era bom demais no meio campo. E o Pio, ponta esquerda? Ninguém parava ele. Rápido, chute mortal. Sorriu.
— Obrigado. E como posso retribuir?
— Me dando um presente de Natal.
— Qual?
— Quero entrar e assistir a um jogo dentro do campo. Esse é o presente de Natal.
— Mas no Natal não terá jogo nenhum!
— Seguinte, o senhor me dá agora, vale para o Natal.
— Antecipado?
— Não sei o que é isso. Mas pode ser agora, vai ter jogo do Santos.
— Isso é fácil, te levo comigo, dou um jeito, você assiste do banco de reservas. Não é nada fácil, vamos ter de combinar com pessoas difíceis. Mas você vai. Venha domingo.
Não sei o que fizeram, fui. No ônibus do time, desci junto e delirei, quase desmaiei quando Bazzani, entrado do vestiário me disse:
— Garoto, este é um presente de Natal de todo o time. Onze presentes, doze com o técnico Vail.
Quase caí! Não era um, eram doze. Presente maior foi a Ferroviária vencer o Santos por 4 x 1. Nunca mais assisti a nenhum jogo. Para quê? Não precisava, aquele está dentro de mim, até hoje aos 88 anos.
*Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara em 1936. Escreveu 58 livros entre romances, contos, crônicas, teatro e infantis. Pertence às Academias Brasileira e Paulista de Letras.