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Deus e o Diabo na terra do Sol

Publicado dia 14/07/2021 às 13h40min | Atualizado dia 14/07/2021 às 13h47min
Metrópoles soma forças com filha de Glauber Rocha para restaurar Deus e o Diabo na Terra do Sol em 4K

Quando Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) chegou ao século 21, a audiência que assistiu à cópia digitalizada em DVD, de 2002, ou à exibição em 2k na telona do Cine Brasília, em 2014, não experimentou o clássico cinemanovista de Glauber Rocha, em toda sua glória.

Com a gradual e irreversível obsolescência dos projetores de película, o telecine – outrora realizado para permitir o acesso do público ao filme, em um suporte compatível à nova época – nunca passara por uma restauração de fato. Deus e o Diabo na Terra do Sol repousava em cinco latas de negativos de fita 35 milímetros, na Cinemateca Brasileira.

Até que surgiu, em 2019, um projeto ambicioso – porém, desafiador – dos cineastas Paloma Rocha e Lino Meireles: restaurar criteriosamente o filme-marco do Cinema Novo, em formato digital, com resolução de 4 mil pixels (ou 4k). O processo está em sua etapa final e chegará às telas de cinema tão logo seja possível, considerando o atual cenário pandêmico.

 

 

Lino Meireles – Produtor
Paloma Rocha – Diretora

Lino procurou Paloma, filha de Glauber e detentora dos direitos de sua obra, com o objetivo de encontrar e recuperar alguma raridade do visionário diretor baiano.

“Queria restaurar filmes que não estivessem disponíveis ao público. E a Paloma queria que fosse este. Estava pensando em algum filme inédito no formato digital, mas Deus e o Diabo mexe muito com a emoção. Para mim, é o suprassumo do cinema brasileiro”, disse Lino.

O cineasta fora convencido por Paloma, não apenas pela notoriedade mundial e canônica alcançada por esta obra de Glauber. Havia uma razão para que Paloma colocasse como prioridade justamente Deus e o Diabo: “Muita gente achava que o filme estava restaurado porque estava em DVD. A primeira versão foi guardada em negativo, como no original, sem marcação de luz, o que nos permitiria fazer um trabalho com o que tem de melhor em termos de restauro, graças à tecnologia e aos técnicos que temos hoje”.

A questão da restauração é delicada. Para compreender mais a fundo a decisão de restaurar Deus e o Diabo, é necessário entender que a qualidade das cópias disponíveis tem impacto determinante sobre a restauração a ser realizada. “Os outros filmes digitalizados do Glauber (Barravento, Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro) foram feitos a partir de cópias riscadas, de cópias positivas. E este estava praticamente sem defeitos”, acrescenta.

Com esta parceria, o desejo de Lino encontrou a necessidade de Paloma. “Ele percebeu que é um projeto importante, porque é difícil de fazer, e vai ser um grande acontecimento para o mundo inteiro”, reconhece a diretora. Lino topou a aventura, convencido da importância de restaurar um dos filmes mais queridos de sua vida.

Para ele, a notoriedade do filme poderá possibilitar também sustentabilidade para um plano permanente de restauro de outras obras nacionais. “Não sou do mercado de distribuição; meu objetivo era financiar uma restauração, independentemente de retorno. Com o trabalho em Deus e o Diabo, pode ser que haja um retorno financeiro. E aí será ótimo, porque possibilitará a restauração de mais um filme”, espera.

Início do processo de restauro

Antes de começar a trabalhar na restauração de Deus e o Diabo na Terra do Sol, Lino Meireles foi picado pelo bichinho da preservação de imagens durante o processo de produção de seu longa-metragem, Candango: Memórias do Festival. Ao fim da 53ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, evento que fora o objeto do documentário, o filme foi vencedor de Melhor Longa na Mostra Brasília e do Prêmio Marco Antônio Guimarães, outorgado pelo Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro (CPCB).

“Quando fiz o Candango, me aprofundei no entendimento sobre as dificuldades de acesso que existem para a memória do cinema brasileiro”, relata Lino, ao se familiarizar com a filmografia de vários diretores em sua pesquisa. “A maioria dos filmes de grandes diretores brasileiros não está disponível para assistirmos. Precisei assistir a vários vídeos no YouTube – porque não queria entrevistar alguém sem assistir à obra em questão –, mas num estado de qualidade nojento.”

Depois de contatos preliminares com alguns cineastas, foi com Paloma Rocha que a conversa se demonstrou frutífera.

Cinemateca Brasileira

Lino e Paloma, então, estabeleceram como ponto de partida a Cinemateca Brasileira. “Nossa ideia inicial era fazer o processo com a própria instituição. Mas a última restauração que fizeram foi em 2013, com Cabra Marcado pra Morrer (1984), de Eduardo Coutinho”, explicou Paloma.

Em 2019, portanto, o maquinário da Cinemateca passara mais de meia década inerte. E, com o desmantelo das políticas culturais, somado ao abandono administrativo da instituição por parte da União, seria impossível realizar um projeto desta magnitude na casa do cinema brasileiro.

Paloma, no entanto, sempre manteve boa relação institucional com a Cinemateca. Mesmo diante do cenário de terra arrasada para a política cultural brasileira, a cineasta encontrou uma abertura no governo federal.

“A gente conseguiu um diálogo com a Secretaria Especial de Cultura. Tenho toda a obra do Glauber lá, mais de trezentas caixas. Eu poderia ficar indignada por tudo que está acontecendo, mas o esforço que faço é de não me indignar mais com o Brasil. Você não almeja mais o topo, agora você só quer saber como cair no buraco sem esfolar a bunda”, ironiza.

Com as latas de Deus e o Diabo em mãos, Paloma agregou à equipe de restauro o fotógrafo e parceiro de set, Luís Abramo, para fazer a marcação de luz, e o então coordenador de preservação da Cinemateca Brasileira, Rodrigo Mercês, para o projeto, além da finalizadora Cinecolor, para a restauração de imagem e do especialista em restauração de som José Luiz Sasso, da JLS Estúdio.

Abramo reconhece a força do projeto de restauro, principalmente pela escalação de técnicos para a realização deste processo: “Foi um ato de coragem juntar essa equipe, em torno desse filme, e fazer uma restauração tão criteriosa. Porque é um processo caro. E tem a Paloma, que conhece muito bem a obra, não só por ser filha do Glauber, mas por pesquisar e trabalhar com esse acervo. Essa memória e essa coordenação dela fazem um time muito forte”.

Rodrigo Mercês, um dos maiores especialistas de preservação do cinema brasileiro, também acredita que o processo de restauro de Deus e o Diabo encontrou uma relação muito favorável, ao conseguir unir o ente público com a iniciativa privada.

“Essa parceria é o grande ponto central dessa abordagem, além de haver esta insistência de Lino e Paloma em garantir o melhor resultado. É uma estratégia bem fora da casinha e muito produtiva”, elogia Mercês, que saiu em agosto de 2019 da Cinemateca e voltou em dezembro do mesmo ano para participar do projeto.

Um dos primeiros passos para o restauro foi estudar as versões do filme. O grupo realizou uma exibição da cópia original em 35 milímetros na própria Cinemateca, com a participação do cineasta Walter Lima Jr., que fora assistente de direção de Glauber neste filme.

“Era uma cópia muito boa e foi superimportante ter o depoimento do Walter, porque ele tinha a memória das primeiras cópias geradas do filme”, lembra Abramo.

A partir desse contato, foram realizadas as primeiras discussões de como seria feito o restauro. “Essa é uma fase muito importante para a gente debater éticas, técnicas e tentar interpretar os desejos originais da fotografia e da direção, além das possibilidades técnicas impressas no negativo”, detalha o fotógrafo.

O resultado já começa a ganhar forma e a equipe consegue se orgulhar da nova cópia de Deus e o Diabo na Terra do Sol. “Será um marco no restauro na cinematografia brasileira”, espera Abramo. “E é uma resposta a isto tudo: que a gente não deve abrir mão e que a gente deve cuidar da história do nosso cinema. História para trás e para frente. Que inspire muito as novas gerações.”

Paloma define que será a melhor versão do filme: “É como se você estivesse vendo uma cópia de um negativo novo. Aliás, acho que vai ficar melhor do que era, porque a tecnologia traz, para este negativo, uma vida que talvez as cópias dos laboratórios à época não tivessem.”

A obra e o cânon

Faltam adjetivos grandiloquentes o suficiente para dar conta do feito cinematográfico que é Deus e o Diabo na Terra do Sol. Esse é um dos raros casos em que o título de obra-prima pode ser adotado sem temor ou resistência. Certamente as loas e os ranqueamentos da produção estão entre os melhores do Brasil, às vezes disputando espaço em listas internacionais, e fazem justiça à obra e ao seu gênio criador, Glauber Rocha.

Diferentemente de muitos dos clássicos retumbantes do cinema, o filme não se deixa aprisionar pelo peso do cânone, capaz de relegar a obra de arte apenas à estatura de referência para gerações vindouras.

A película original de Deus e o Diabo na Terra do Sol foi lançada comercialmente no Rio de Janeiro em 10 de julho de 1964. Favorecido por um recente interesse europeu no cinema brasileiro, mas sobretudo pelo clima político que vinha da truculenta e apressada construção da nova capital a um iminente golpe militar de Estado, o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol é recebido em Cannes com espanto e aclamação, embora não tenha saído com a Palma de Ouro.

Os olhos atônitos testemunhavam a câmera cambaleante que registrava um Brasil profundo, o microcosmo de um sertão que representava um sentimento continental que habitava todos os rincões desta terra sofrida.

Estamos diante da epopeia sertaneja de um casal de humildes trabalhadores do roçado: Manuel (Geraldo del Rey), cuidador de gado esperançoso e aguerrido, e Rosa, dona de casa que pila sua farinha com toda a resignação presente nos olhares profundos de Yoná Magalhães, até seu encontro romântico-espiritual com Corisco (Othon Bastos).

Manuel se rebela contra o sistema após o patrão passar-lhe a perna e lhe deixar sem um tostão. Revoltado, mata-o. Toma Rosa pelo pulso e se junta à celeuma dos seguidores de beato Sebastião (Lídio Silva) – um profeta, inspirado em Antônio Conselheiro, que preconiza uma nova Canaã, para além da aridez daquela terra.

Glauber recorre a uma iconografia tão simples quanto universal neste nordestern: o bem e o mal narrados a partir das simbologias do diabo branco (Corisco) e do deus negro (Sebastião); da masculinidade ingênua (Manuel) e da feminilidade perceptiva (Rosa); da hipocrisia do padre (João Gama) e da moral heroica do mercenário Antônio das Mortes (Mauricio do Valle); do latifúndio e da escassez; do sertão e do mar.

No dilema maniqueísta entre as imagens de Deus e do Diabo, Glauber leva o debate para uma outra via, entre o niilismo e o esclarecimento. Coloca uma perspectiva mais complexa do que o dualismo sugerido pelo título, em uma odisseia para a compreensão final de que a Terra não é nem de Deus nem do Diabo.

Fonte: Metrópoles

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