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A conta da cultura

Publicado dia 02/04/2021 às 18h29min | Atualizado dia 02/04/2021 às 18h49min
A cultura do dinheiro no Brasil sempre engole o dinheiro da cultura

A conta da cultura

A cultura do dinheiro no Brasil sempre engole o dinheiro da cultura.

Parafraseando de forma invertida um famoso manifesto do século XIX, um espectro ronda a cultura brasileira, e esse espectro é o capital. Não há atualmente roda de pessoas direta ou indiretamente relacionadas ao campo da produção cultural em que não se reclame da falta de dinheiro — seja ele público, seja ele privado. O que intriga nessa equação negativa para os agentes da cultura é que não é a soja, nem o aço, que constituem um imaginário mundial sobre nosso país, mas sim as múltiplas formas materiais e simbólicas da(s) nossa(s) cultura(s).

A pergunta que guia atualmente quem trabalha cotidianamente com a produção de livros, filmes, peças, exposições, saraus, circos, festivais, shows, discos e outras frentes é: como fazer aquilo que desejo e em que acredito sem precisar implorar pelo dinheiro alheio? Como “partilhar o sensível” sem destruir minha ética, sem viver em angústia bancária, sem perder o sumo do que planejei? E mais: por que fazer algo profissional no âmbito da cultura é quase sempre um périplo de pedidos e burocracias?

Na semana que passou, a atriz e escritora Fernanda Torres publicou na “Folha de S.Paulo” um artigo que, por sua vez, comentava uma entrevista do atual presidente da Funarte, Francisco Bosco, concedida ao jornal “Valor Econômico”. O ponto central de Torres foi o debate (salutar) encaminhado por Bosco ao redor da Lei Rouanet. Não preciso aqui discorrer sobre o tema, até porque a questão é complexa em um momento de vacas magras e tenho certeza de que uma conversa pública entre eles será profícua em uma seara que urge ser pensada coletivamente por quem vive o dia a dia da cultura. Na segunda-feira, aliás, o mesmo jornal publicou a resposta de Bosco — irretocável no que diz respeito ao cargo que agora ocupa e ao estilo direto e limpo na argumentação dos pontos abordados por Torres. Como outros nomes qualificados estão se envolvendo diretamente no debate (ontem tivemos aqui o texto de Marcus Faustini), ele aponta para novos e, oxalá, positivos desdobramentos que não cabem — por tamanho de espaço — nesta coluna.

O que vale a pena comentar aqui, porém, é o seu pano de fundo. Comparado a outros tempos, é claro que um dispositivo que une Estado e capital privado, através de renúncias fiscais para que empresas e pessoas físicas (quase ninguém se lembra disso) possam investir em produções culturais que desejarem, precisa ser valorizado como meio. Mas, eis aí o pulo do gato, não como norma. É sabido que a liberdade de escolha do investidor, geralmente voltada para uma lógica concentradora em nomes e espetáculos que garantam o famoso “retorno para a marca”, contrasta muitas vezes com a demanda extremamente complexa, faminta e pulverizada da produção cultural em um país multifacetado e imenso com o nosso. Atingir a justa medida disso realmente é tarefa nada simples, e só por estimular o debate, e não o simples “rebate”, Bosco já inicia muito bem o seu papel renovador à frente do órgão público que deve cuidar menos desse e muito mais de outros aspectos do tema.

Aqui, voltamos ao ponto inicial do texto: por que a cultura parece ser sempre um pedinte no cenário econômico do país? Por que sua crise financeira (representa apenas 0,18% do orçamento do governo federal) não abre o primeiro caderno de política em vez de ficarmos acompanhando novelas enfadonhas de nomes caquéticos do poder brasiliense? No domingo, em entrevista ao GLOBO, o imenso ator Pedro Paulo Rangel narra seu périplo financeiro para realizar sua última peça usando a palavra “mendicância”. Sua fala, sabemos, é a de muitos. “Passar o pires” tornou-se ato contínuo entre monstros sagrados e jovens realizadores. No limite, todos estão no mesmo barco que segue a pique.

O que precisa ser debatido, ao menos para mim, é o seguinte: quando é que, nas últimas décadas, as empresas brasileiras fizeram investimentos maciços em cultura, com recursos do seu próprio bolso e lucro, sem contarem com a renúncia fiscal? Por que, até hoje, sempre que fazem patrocínios vultosos para grandes eventos, não soltam seu dinheiro sem precisarem descontar do que devem ao país como empresas com lucros brutais? A pergunta é quase burra de tão intrincadas que são suas respostas (basta lembrarmos que alguns grupos econômicos têm seus próprios centros culturais, geralmente, de excelência).

Vale iniciar um debate sobre o papel do capital privado para além da renúncia fiscal? Ele é tímido no que diz respeito ao papel promotor que vemos em outros países. E isso não só na cultura, mas também nas universidades e em outras frentes de ação social. Não se trata de pregar a substituição do Estado pelo mercado, mas sim de afirmar que o mercado pode muito mais com SEU dinheiro do que faz atualmente. Ampliar formas de financiamento da cultura, para além da Rouanet, é sem dúvida um desafio. Só que, desconfio, é aí que mora o problema: temos uma cultura do dinheiro que sempre engole o dinheiro da cultura.

Fred Coelho  - Professor Adjunto do Departamento de Letras. Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio   de Janeiro (1994-1999).



 

Fonte: O Globo

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